Monday, December 05, 2005

Exercício de olhar #1

As noites naquele sótão eram passadas como numa redoma coalhada de orvalho e chuva miudinha, que não molha. O sótão era grande, constituído pela sala dos computadores, aberta e acessível, com duas secretárias voltadas uma para a outra, cheias de pequenos utensílios de escritório sem uso, com pó e melancolia de funcionário reformado a contra gosto. Um computador de mesa ocupava uma das mesas de trabalho, um enorme colosso em antiguidade e lentidão, coberto de capas de plástico transparente, que se dizia proteger da muita humidade existente naquele espaço. Na outra mesa, centrava-se o portátil e uma moldura dos filhos muito novos, duas crianças sorridentes, os dentes com pedra por limpar. Inúmeros outros objectos compunham aquela natureza morta de escritório, não já escritório: vários copos com canetas, réguas, furadores, agrafadores de cores claras (a condizer com o resto do material), papéis, livro de recibos abandonados, cd’s mal gravados, cinzeiros ainda sujos…uma velha agenda de telefones abandonada, com as letras do alfabeto oxidadas pelo tempo e pelo esquecimento. Contactos que vão, contactos que nunca se tiveram. O restante espaço do sótão era composto por um estúdio luminoso, habitado por muitos seres de vários tamanhos, raças e credos. Seres com muitas histórias para contar, alinhados nas prateleiras, ansiosos que a próxima visita os espera-se um suave folhear de mãos macias, um cuidadoso manuseamento de dedos-pétala. Havia nesse estúdio de mil vidas condensadas, uma janela que dava para o cruzamento da avenida, ornamentado por vários carvalhos alinhados, com folhas douradas pelo sol abundante que varria a rua. Um quiosque verde e uns bancos compunham o resto da dormente paisagem. Um estirador, grande, de madeira clara era o móvel que concluía aquele espaço acolhedor. Estava encostado à janela central, com vista para os carvalhos e os bancos de jardim. Debruçar-se sobre as telhas torradas pelos raios de sol era a inspiração dos moradores do sótão. A oeste estavam as árvores grandes, de grandes copas, com flores de cheiros discretos. A este existia um bairro de casas multiplicadas e cinzentas, daquele cinzento da cor dos ferros das camas dos quartéis, um cinzento frio e transitório, incapaz de conter nele mais que a simples função de dormitório.Era um sótão feliz, apanhava muito sol nos longos verões daquela terra e muita chuva, como se as telhas tivessem tornado forma por uma fibra de água apenas e não de argila.

7 Comments:

Blogger a das artes said...

Isto é partilha.
Ponto final.
;)

2:06 AM  
Blogger Clepsidra said...

Não era essa a intenção.Apenas realismo.

2:05 PM  
Blogger pedro said...

acho que isto foi o que gostei mais de ler, de tudo o que já li teu. siga.

4:28 AM  
Blogger Clepsidra said...

:)

5:30 AM  
Blogger Ulisses Martins said...

Ai está uma bela prosa de descrição de um espaço e dum ambiente que nos transporta imediatamente para lá e que nos deixa com a sensação que também partilhámos esse espaço. Parabéns.

9:42 AM  
Blogger Clepsidra said...

Muito Obrigado!:)

1:26 PM  
Blogger Art&Tal said...

muito bem
tudo muito bem pesado
sem espenhas peq. a entalar

1:01 AM  

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